Categorias

O regresso de um filho...
4/3/2020
O contexto e os sinais
TRIM TRIM
Mãe:
- Bom dia, é o psicólogo especializado em problemas de jogo?
Psicólogo:
- Sim, sou. Chamo-me Pedro. Em que posso ajudar?
Mãe:
- Estou a ligar porque o meu filho tem 20 anos e desde sempre teve uma grande atração pelo ecrã, desde o game boy que era do irmão, passando pelas consolas e depois os MMORPG*, os FPS* e agora um MOBA*. Ele correu todos os jogos durante anos, várias horas por dia.
Psicólogo:
- Poderia dizer-me quais foram as principais consequências desta relação intensa com o ecrã e com os videojogos?
Mãe:
- Enfim… Foi sempre aumentando a quantidade de tempo/intensidade do tempo de jogo e se eu não deixava ele ficava tão agressivo que chegou a empurrar-me com muita força! Foi deixando os escuteiros, o futebol e até a guitarra, de que gostava tanto… Deixou de se encontrar com os amigos (só via net), acaba por estar a jogar mais tempo do que pretende e depois mente para manter a sua vida dedicada ao videojogo e ao streaming. Para além disso os resultados escolares pioraram de ano para ano, até teve de repetir o 12º e já chumbou o 1º ano do curso de Informática que tanto queria fazer.
Psicólogo:
- Hmm, ele parece ter todos os sinais e sintomas da Internet Gaming Disorder (dependência de videojogo via net). Seria importante reunir-me com ele e as pessoas significativas da vida dele (pai, mãe, irmãos, avós?), pois este é um problema familiar…
Mãe:
- Vou tentar, mas desde que me separei a família anda toda desorganizada. É cada um para seu lado…
A compreensão e a intervenção
Três dias mais tarde, o psicólogo reúne com os pais, o irmão mais velho, o avô e o jovem.
Psicólogo:
- Bom dia, sou o Pedro, o psicólogo. Já sei as principais consequências do jogo excessivo do Damião e gostaria de saber o que têm feito os adultos para gerir esta situação ao longo dos últimos anos.
Avô:
- Eu, como avô, posso dizer que ele está sempre de olhos no ecrã e já não nos divertimos tanto, para além de me pedir muitas vezes dinheiro para skins, ou ter “experiências” ou lá o que é, para evoluir mais depressa.
Irmão mais velho:
- Eu, como irmão, já nem o vejo, nem ouço, a não ser quando me vem contar os seus “feitos heroicos” e o seu ranking no jogo. Ele está a ficar mais isolado e sempre cheio de sono.
Pai:
- Eu, como pai, já desisti de ouvir “está bem, está bem… já vai… já vou…” e se calhar não é tão grave assim, pois eu próprio também passo muitas horas no ecrã e sei que ele está sossegado em casa, apesar de já me ter tirado dinheiro para as tais skins!
Mãe:
- Eu, como mãe, estou prestes a ter um esgotamento, pois já não aguento apanhá-lo às três da manhã a jogar, a ser agressivo, a isolar-se, com um olhar de desdém e de irritabilidade. Já não suporto sentir esta degradação lenta, dia a dia…
Jovem (Damião):
- Bom… Deve ser a minha vez de falar… Devo dizer-vos que estão todos enganados! Eu tenho o direito de jogar, eu sou bom! Muito bom… E serei profissional, pois todos reconhecem as minhas skills e o meu ranking é muito elevado. Sinto-me bem na adrenalina do jogo, na conquista, na liderança em que, aí sim, controlo tudo, e no reconhecimento constante por parte dos outros gamers. Não gosto das outras coisas, como a seca de um jantar de família, de uma saída de escuteiros ou de umas aulas em que só há teoria e blá blá. Deixem-me em paz a fazer aquilo de que gosto!!!
Psicólogo:
- Como psicólogo, o que vejo é uma família onde a comunicação é escassa, as regras inexistentes, os papéis estão mal definidos, os sentimentos/afetos não são verbalizados, nem tratados. Ou seja, uma grande disfunção em que o barco pareceu perder o rumo. Mas, como era costume dizer-se, “em casa onde não há pão, todos ralham e ninguém tem razão”.
A mudança e o tratamento
Psicólogo:
- Vamos implementar várias medidas:
· Plano ocupacional (objetivos, tarefas domésticas, atividades, etc.)
· Exclusão online e offline de videojogos
· Limitação de pessoas, locais, situações relacionadas com o gaming e o streaming
· Limitação/controlo do acesso a internet e a dinheiro imediato
· Pessoas significativas participam no tratamento
· Regularidade de psicoterapias de grupo/individuais
· Trabalhos terapêuticos (assertividade, tomada de decisões, resolução de problemas, gestão de sentimentos, mecanismos de defesa, padrões de comportamento, etc.)
· Frequência de grupos de autoajuda ou outra rede de suporte
· Consequências em caso de incumprimento (ficar sem telemóvel, tratamento interno, corte total de internet, etc.)
- Isto vai ter de ser negociado e acordado entre todos, OK?
Damião:
- Está bem, está bem… Já vos atendo um dia…
Pai:
- Vem aí a 3.ª guerra mundial!
Irmão:
- Acho muito bem, por mais que ele me vá acusar de alta traição à pátria…
Avô:
- Coitadinho…
Mãe:
- Oh Doutor, trate lá dele… Diga-lhe para não jogar mais, ele não me ouve…
Os resultados
No fim, e após muita conversa sobre responsabilidade, modelos parentais, liderança, autoridade (que é diferente de autoritarismo), poder, dependência, amor, entre outras, pôs-se mãos à obra. O Damião participou em algumas reuniões e percebeu-se que uma parte do problema tinha raízes em alguns “recifes” do passado.
Damião percebeu que se alheava através dos videojogos de sentimentos difíceis que a vida lhe tinha proporcionado. Momentos como: o divórcio dos pais aos 10 anos, a ansiedade social, a morte da avó aos 12, o ter estado doente durante 2 meses em casa, o facto de ser um pouco obeso, a dificuldade em falar com raparigas e o bullying, que tinha durado quase um ano.
Durantes semanas o Damião ganhou consciência de comportamentos e sentimentos (agressividade, revolta, inadequação, inferioridade, ansiedade), percebeu “crenças” que sabotavam a sua existência (“só és bom no jogo…, o mundo lá fora é implacável…, as pessoas de quem gosto vão sempre embora, por isso é melhor manter-me distante…”, etc.) aprendeu novas estratégias na tomada de decisões, na assertividade, na gestão da ansiedade, no evitamento, na gestão de processos de luto (do próprio videojogo e dos amigos com quem mantinha uma relação disfuncional), para cultivar a autoestima, fazer dieta, etc.
Não fosse a família a manter o “amor firme”, com regras e afetos, provavelmente Damião estaria mais evoluído no ranking e mais preso no círculo vicioso dos videojogos em que se viu enredado sem o desejar.
Passados meses Damião recomeçou a jogar regradamente (noutro MMORPG que não aquele que lhe trouxe problemas), passou para o 2º ano do curso, ainda discutia com familiares (mas por outras razões), tinha feito um bom amigo na faculdade e começou a ter aulas de bateria. Damião percebeu que o problema não estava nos videojogos, mas sim na má relação que tinha estabelecido com eles. Uma frase da mãe reteve a minha atenção: “Tenho o meu filho de volta…”.
Este é um final feliz a contrastar com jovens que vêm à primeira consulta já com 35 anos, obesos, pálidos, sem capacidade verbal, em grande conflito e desgaste com a família, sem nunca terem verdadeiramente trabalhado ou estudado, com problemas graves de depressão e sobretudo ansiedade. O prognóstico é sempre tanto mais reservado quanto mais anos forem passando e a família for incapaz de demonstrar o amor que tem pelo jovem…
Nesta fase de confinamento, as probabilidades de estes problemas aumentarem em vários jovens, e não só, são muito elevadas. A atenção e apoio da família são ainda mais importantes!!!
Pedro Hubert
Diretor do Instituto de Apoio ao Jogador
***
· MMORPG = Massive Multiplayer Online Role Playing Game (World of Warcraft, Albion, Black Desert…)
· FPS = First Person Shooter (Call of duty, Counter Strike CS:GO…)
· MOBA = Multiplayer online Battle Arena (League of Legends, Dota…)
Não devemos esquecer outros cuja classificação é menos clara, como o Fortnite, Minecraft, GTA, ou mesmo jogos como Candy Crush ou Angry birds