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    Quem nunca ouviu?

    Quem nunca ouviu?

    6/5/2020

    Cheira bem, cheira a Lisboa!

    São João, dá cá um balão!

    Ou… O São Pedro está-se a acabar….


    Junho é o mês dos Santos Populares com festas e arraiais por todo o país nas noites de Santo António, de São João e de São Pedro.

    As principais são as Festas de Lisboa, de 12 para 13 de junho, dia de Santo António, e as do Porto, na noite de 23 para 24 de junho, quando se celebra o S. João. São festas duma grande animação.

    Em Lisboa as marchas populares de cada bairro desfilam pela Av. da Liberdade, enchendo aquela artéria de centenas de figurantes, música, colorido e muito público. Mas a enchente e a animação não são menores nas ruas desses bairros.

    No Porto, a festa é idêntica em cor e alegria ao longo dos bairros mais tradicionais. Mas o Porto tem ainda outros usos e costumes: se antigamente os foliões batiam com alho-porro na cabeça dos companheiros, hoje usam martelinhos de plástico. No Porto também se lançam coloridos balões de ar quente, numa das mais bonitas celebrações destes festejos populares. A noite acaba para muitos junto à praia, para ver nascer o sol ou para um banho matinal, como manda a tradição.

    A 29 de junho comemora-se ainda o S. Pedro, também com festas populares em várias localidades do país, como Póvoa de Varzim, Afurada, Sintra e Évora.


    Em seguida, deixamos, para deleite, os poemas de Fernando Pessoa dedicados a cada um destes santos populares:



    SANTO ANTÓNIO


    SANTO ANTÓNIO

    Nasci exatamente no teu dia —

    Treze de Junho, quente de alegria,

    Citadino, bucólico e humano,

    Onde até esses cravos de papel

    Que têm uma bandeira em pé quebrado

    Sabem rir...

    Santo dia profano

    Cuja luz sabe a mel

    Sobre o chão de bom vinho derramado!

    Santo António, és portanto

    O meu santo,

    Se bem que nunca me pegasses

    Teu franciscano sentir,

    Católico, apostólico e romano.

    (Refleti.

    Os cravos de papel creio que são

    Mais propriamente, aqui,

    Do dia de S. João...

    Mas não vou escangalhar o que escrevi.

    Que tem um poeta com a precisão?)

    Adiante ... Ia eu dizendo, Santo António,

    Que tu és o meu santo sem o ser.

    Por isso o és a valer,

    Que é essa a santidade boa,

    A que fugiu deveras ao demónio.

    És o santo das raparigas,

    És o santo de Lisboa,

    És o santo do povo.

    Tens uma auréola de cantigas,

    E então

    Quanto ao teu coração —

    Está sempre aberto lá o vinho novo.

    Dizem que foste um pregador insigne,

    Um austero, mas de alma ardente e ansiosa,

    Etcetera...

    Mas qual de nós vai tomar isso à letra?

    Que de hoje em diante quem o diz se digne

    Deixar de dizer isso ou qualquer outra coisa.

    Qual santo! Olham a árvore a olho nu

    E não a vêem, de olhar só os ramos.

    Chama-se a isto ser doutor

    Ou investigador.

    Qual Santo António! Tu és tu.

    Tu és tu como nós te figuramos.

    Valem mais que os sermões que deveras pregaste

    As bilhas que talvez não concertaste.

    Mais que a tua longínqua santidade

    Que até já o Diabo perdoou,

    Mais que o que houvesse, se houve, de verdade

    No que — aos peixes ou não — a tua voz pregou,

    Vale este sol das gerações antigas

    Que acorda em nós ainda as semelhanças

    Com quando a vida era só vida e instinto,

    As cantigas,

    Os rapazes e as raparigas,

    As danças

    E o vinho tinto.

    Nós somos todos quem nos faz a história.

    Nós somos todos quem nos quer o povo.

    O verdadeiro título de glória,

    Que nada em nossa vida dá ou traz

    É haver sido tais quando aqui andámos,

    Bons, justos, naturais em singeleza, Que os descendentes dos que nós amámos

    Nos promovem a outros, como faz

    Com a imaginação que há na certeza,

    O amante a quem ama,

    E o faz um velho amante sempre novo.

    Assim o povo fez contigo

    Nunca foi teu devoto: é teu amigo,

    Ó eterno rapaz.

    (Qual santo nem santeza!

    Deita-te noutra cama!)

    Santos, bem santos, nunca têm beleza.

    Deus fez de ti um santo ou foi o Papa? ...

    Tira lá essa capa!

    Deus fez-te santo! O Diabo, que é mais rico

    Em fantasia, promoveu-te a manjerico.

    És o que és para nós. O que tu foste

    Em tua vida real, por mal ou bem,

    Que coisas, ou não coisas se te devem

    Com isso a estéril multidão arraste

    Na nora de uns burros que puxam, quando escrevem,

    Essa prolixa nulidade, a que se chama história,

    Que foste tu, ou foi alguém,

    Só Deus o sabe, e mais ninguém.

    És pois quem nós queremos, és tal qual

    O teu retrato, como está aqui,

    Neste bilhete postal.

    E parece-me até que já te vi.

    És este, e este és tu, e o povo é teu —

    O povo que não sabe onde é o céu,

    E nesta hora em que vai alta a lua

    Num plácido e legítimo recorte,

    Atira risos naturais à morte,

    E cheio de um prazer que mal é seu,

    Em canteiros que andam enche a rua.

    Sê sempre assim, nosso pagão encanto,

    Sê sempre assim!

    Deixa lá Roma entregue à intriga e ao latim,

    Esquece a doutrina e os sermões.

    De mal, nem tu nem nós merecíamos tanto.

    Foste Fernando de Bulhões,

    Foste Frei António —

    Isso sim.

    Porque demónio

    É que foram pregar contigo em santo?





    SÃO JOÃO


    SÃO JOÃO

    Ó Precursor, fizeste-la bonita!

    Não que teu Cristo, incarnação do Bem —

    Não seja quem seja o teu Divino Anunciado.

    O mal são os que após, sem mística divina

    Nem ternura cristã, ou só humana,

    Meteram a Jesus na cela da doutrina

    Com as algemas do ódio manietado

    Para depois manchar de falsa fé

    O pobre homem que todo homem é

    A cruel multidão negramente infinita

    Que tem sido o algoz ou o ladrão

    Da ingénua humanidade aflita —

    Esses que, aqui mesmo, pelos modos,

    Dão ao inferno realização...

    Ah, não podiam ser piores, nem

    Que a mulher do Diabo, se ele a tem,

    Os tivesse parido a todos.

    Eu bem sei que houve muito santo e crente,

    Muito puro, bondoso e inocente.

    Bem sei, bem sei:

    Sei-o eu e sabe-o toda a gente.

    Mas esses, cuja alma está em Cristo

    São só isto —

    Qualquer remédio que se dissolvesse

    No chá que para isso há,

    E cujo gosto nele se perdesse;

    O chá fica sabendo só a chá.

    Se o remédio faz bem,

    Não o sabe ninguém.

    Que o chá não presta, não duvida alguém.

    Sabemos isso, e sabê-lo-ia antes

    De todos nós teu Mestre que viria,

    Profeta, Deus e guia dos errantes,

    Quão dolorosamente o saberia?

    Sei que houve astros no céu da fé vazia.

    Sei, mas repara que falso isso soa!

    Por mais astros que a noite use brilhantes,

    Que Diabo!, a noite não se chama dia.

    Ó Precursor! Fizeste-a boa!

    Daí, para nós, és de Lisboa,

    Não és o precursor de nada.

    És um rapaz ainda menino

    Que tem por missão boa,

    Por missão sorridente e sossegada

    Ter ao colo um cordeiro pequenino.

    Lá o que esse cordeiro significa

    Não tem cheiro

    Para o povo, que tem a alma rica

    Da emoção que não conhece.

    Para ele o cordeiro é um cordeiro,

    E o menino sorri e a vida esquece.

    O resto são fogueiras

    E os saltos dados a gritar

    Com um medo exagerado

    Feito tudo de maneira

    A mostrar

    O riso, as pernas e o agrado.

    É quente e anónima a aragem,

    Tudo é juventude e viço

    Num arraial multicolor e vasto.

    Bonito serviço

    Como homenagem

    A quem, ainda com cabeça, foi um casto!

    Mas é assim que és

    E é assim que serás,

    Até que pisem esta terra os pés

    Do último fado que o Destino traz.

    Então, esperamos, eu e todos,

    Ver-te «surgir no céu», como quem vence

    Tudo que é realidade ou ilusão

    Por o menino ser que lhe pertence,

    E os seus bons e santos modos

    «Com o cordeirinho na mão»,

    Como te viu Catullo Cearense.

    Mas, desçamos à terra,

    Que, por enquanto, o céu aterra,

    Porque antes disso mete a morte.

    Há muita coisa desconhecida

    Na tua vida.

    Tens muita sorte

    Em ninguém saber da partida

    Que em mil setecentos e dezassete

    Tu fizeste à Igreja constituída

    Estás, eu bem sei, cansado

    Com o que a Igreja se intromete

    Com tua vida e o teu divino fado.

    (E) foi então que, para te vingar

    E à maneira de santo, os arreliar

    Desceste mansamente à terra

    Perfeitamente disfarçado

    E fizeste entre os homens da razão

    Um milagre assinado,

    Mas cuja assinatura se erra

    Quando em teu dia, S. João do Verão,

    Fundaste a Grande Loja de Inglaterra.

    Isto agora é que é bom,

    Se bem que vagamente rocambólico

    Eu a julgar-te até católico,

    E tu sais-me maçon.

    Bem, aí é que há espaço para tudo,

    Para o bem temporal do mundo vário.

    Que o teu sorriso doure quanto estudo

    E o teu Cordeiro

    Me faça sempre justo e verdadeiro,

    Pronto a fazer falar o coração

    Alto e bom som

    Contra todas as fórmulas do mal,

    Contra tudo que torna o homem precário.

    Se és maçon,

    Sou mais do que maçon — eu sou templário.

    Esqueço-te santo

    Deslembro o teu indefinido encanto.

    Meu Irmão, dou-te o abraço fraternal.



    SÃO PEDRO


    SÃO PEDRO

    Tu, que Diabo?, és velho.

    És o único dos três que traz velhice

    Às festas. Tuas barbas brancas

    Têm contudo um ar terno

    A que o teu duro olhar não dá razão.

    Parece que com essas barbas brancas

    Por um fenómeno de imitação

    Pretendes ter um ar de Padre Eterno.

    Carcereiro do céu, isso é o que és.

    Basta ver o tamanho dessas chaves —

    As que Roma cruzou no seu brasão.

    Segundo aquele passo do Evangelho

    Do «Tu és Pedro» etcetera (tu sabes),

    Que é, afinal uma fraude

    Meu velho, uma interpolação.

    Carcereiro do céu, que chaves essas!

    Nem dão vontade de ser bom na terra,

    Se, segundo evangélicas promessas

    Vamos parar, ao fim, a um céu claustral.

    Isso — fecharem-me — não quero eu,

    Nem com Deus e o que é seu

    Que o estar fechado faz-me mal

    Até na beatitude do teu céu,

    Entre os santos do paraíso,

    (A liberdade — Deus dá a Deus —

    Um Deus que não sei se é o teu),

    O estar fechado, aqui ou ali, dizia eu

    Faz-me terríveis cócegas no juízo.

    Enfim, que direi eu de ti, amigo,

    Que não seja uma coisa morta,

    Anti-popular, gongórica,

    Por fruste deselegante,

    Como de quem, sem saber nada, exausto,

    Começo por duvidar bastante,

    Desculpa-me chaveiro antigo,

    De que tivesses existência histórica.

    Mas isso, é claro, não importa

    Se nos trazes

    A alegria da singeleza

    Ou a bondade que não sabe ter tristeza.

    O pior é que nada disso fazes.

    O teu semblante é duro e cru

    E as barbas que roubaste ao Deus que tens

    Só arrancam aos dandies teus loquazes

    Ditos de dandies cínicos desdéns.

    Que diabo, és uma série de ninguéns.

    O Santo são as chaves, e não tu.

    Para uns és S. Pedro, o grão porteiro,

    Para outros as barbas já citadas,

    Para uns o tal fatídico chaveiro

    Que fecha à chave as almas sublimadas.

    Para uns tu fundaste a Roma do Papado

    (Andavas bêbado ou enganado

    Ou esqueceste

    O teu posto quando o fizeste)

    E para outros enfim, como é o povo

    E segundo as ideias que ele faz,

    És quem lhe não vem dar nada de novo —

    Umas barbas com S. Pedro lá por traz.

    É difícil tratar-te em verso ou prosa,

    Tudo em ti, salvo as barbas, é incerto,

    Tudo teu, salvo as chaves, não tem ser

    E a alma mais humilde é clamorosa

    De qualquer coisa que se possa ver,

    Em sonho até, qual se estivesse perto.

    Olha, eu confesso

    Que nunca escreveria

    Este vago poema, em que me apresso

    Só para me ver livre do teu nada,

    Se não fosse para dar um cunho

    A este livro da trilogia

    (Santo António, S. João, S. Pedro —

    De popular, que bem que soa!)

    Mas porque diabo de intuição errada

    É que vieste parar a Junho

    E a Lisboa?

    Isto aqui ainda tem

    Um sorriso que lhe fica bem,

    Que até, até

    No teu dia,

    (Ó estupor velho

    Como um chavelho,)

    Nas ruas

    O povo anda com alegria,

    É fé,

    Não em ti nem nas barbas tuas

    Mas no que a alegria é.

    Olha, acabei.

    Que mais dizer-te, não sei.

    Espera lá, olha

    Roma, fingindo que viceja,

    Lentamente se desfolha.

    Teu último gesto seja

    Um gesto volvente e mudo.

    Se tens poder milagroso,

    Se essas chaves abrem tudo,

    Deixa esse céu lastimoso.

    Deixa de vez esse céu,

    Desce até à humanidade

    E abre-lhe, enfim no mudo gesto teu,

    As portas do Inferno, e da Verdade.


    Fontes:

    Pessoa Santo António http://arquivopessoa.net/textos/3791

    Pessoa São João http://arquivopessoa.net/textos/3809

    Pessoa São Pedro http://arquivopessoa.net/textos/3818


    Ferrnando Pessoa: Santo António, São João, São Pedro. Fernando Pessoa. (Organização de Alfredo Margarido.) Lisboa: A Regra do Jogo, 1986.  - 

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