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Eugénio de Andrade
12/30/2022
Corpo e mãos, rosto e flanco, coração e frutos, língua e palavra, lume e sal, terra e água, rosa e álamo, rio e mar, sol e obscuridade, gatos e cavalos, verão… eis um punhado de palavras do qual faz expressivo uso a poesia de Eugénio de Andrade. Um poeta que nasceu na freguesia de Póvoa da Atalaia, no Fundão, e que assinou os primeiros livros (esses acabaria por os rejeitar) com o seu nome próprio: José Fontinhas. Cabe lembrá-lo aqui, pois, a 19 de janeiro de 1923, comemora-se o centésimo aniversário do nascimento do poeta, que haveria de falecer a 13 de junho de 2005, no Porto. Por esta cidade se apaixonou, já jovem adulto, e nela viveu e trabalhou, dedicando-lhe alguns dos mais belos textos em prosa e em verso que conheço sobre as suas ruas e praças, gentes e artistas.
Da Beira Baixa – onde tivera, na aldeia, as primeiras experiências vitais, indissociáveis da presença tutelar, sempre bem-amada, de uma mãe que o familiarizou com velhas histórias e canções – o jovem José Fontinhas ruma a Lisboa. Na capital frequenta o liceu e começa a conviver com poetas (por exemplo, António Botto, que o encoraja a escrever) e deslumbra-se com a poesia de Pessoa; mais tarde vive em Coimbra (onde conhece Miguel Torga e Eduardo Lourenço) e, em 1947, torna-se funcionário público. Em 1950, instala-se no Porto e vem a morar num apartamento na Rua Duque de Palmela, sentando-se, amiúde, no café Duque a compor os seus poemas. Só quatro décadas depois, se muda para o edifício da extinta Fundação Eugénio de Andrade, na calçada de Serrúbia, na Foz do Douro, tornando-se então presença assídua no Passeio Alegre, perto do rio, do mar e junto das árvores e pombos do jardim a que tanto quis.
Eugénio de Andrade viajou, conviveu com muitos pintores e poetas e gostava dos gatos. Era intocável o amor que o ligava à mãe, inspiradora de inesquecíveis poemas. Odiou a ditadura salazarista-marcelista, tendo dedicado textos a vários lutadores antifascistas, e afirmou-se como radicalmente antibelicista e como um cantor da liberdade. A liberdade de ver, de ouvir e de sentir, a liberdade de amar – pois, apesar das sombras originadas pela fealdade do mundo, a poesia de Eugénio de Andrade é, frequentemente, a escrita d’«o mais íntimo amigo do sol», para usar o título da sua fotobiografia. Escreveu: “Ao desejo, / à sombra aguda / do desejo, / eu me abandono. // Meu ramo de coral, / meu areal, / meu barco de oiro / eu me abandono. (…)”
Toca-nos a força afetiva de palavras e metáforas suas que emergem do mundo natural e dos animais, do corpo amante, das pessoas simples, crianças e amigos. Tocam-nos fundamente a erotização da escrita lírica, a devoção às paisagens meridionais, a dicção e musicalidade puríssimas dos seus versos.
Além de original e muito premiado poeta (As Mãos e os Frutos, 1948, Ostinato Rigore, 1964, Branco no Branco, 1984, entre muitos outros títulos) e notável prosador (Os Afluentes do Silêncio, 1950, A Cidade de Garrett, 1993, e outros), Eugénio de Andrade deixou-nos um par de belíssimos livros para a infância: História da Égua Branca (1977) e os versos de Aquela Nuvem e Outras (1986), este último publicado por Edições ASA e ilustrado pelo seu grande amigo, pintor Júlio Resende.
Marcadas pelo rigor e pela capacidade de sugestão da linguagem, tanto As Mãos e os Frutos e Os Amantes sem Dinheiro (1950) como outras obras são hoje reconhecidos e influentes marcos, de assinalável poder na abertura de caminhos novos para a poesia portuguesa da segunda metade do século XX.
Celebre-se, pois, o legado literário e humano deste singular escritor, pertencente a uma plêiade geracional de figuras maiores das nossas letras, como Jorge de Sena, Sophia de Mello Breyner Andresen e Agustina Bessa-Luís. Personalidades das quais foi amigo Eugénio de Andrade. O poeta que um dia escreveu: “Eu crescia para o verão. / Para a água / antiquíssima da cal / crescia violento e nu. (…)”
José António Gomes
Escola Superior de Educação do Porto