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    Língua materna

    Língua materna

    2/18/2021

    Uma língua traz-nos no ventre muitos séculos. Nos últimos nove meses, os da gestação, começamos a escutar o seu timbre, o seu ritmo, a sua métrica. Sem darmos conta, a língua alimenta-nos, agasalha-nos, estamos nela mergulhados, na sua água, no seu calor.

    Um dia essa língua dá-nos à luz. Logo a seguir conforta-nos, beija-nos, para adormecermos embala-nos com uma canção. Quanto mais a língua nos brinca e nós brincamos com ela, quanto mais nos canta e nos conta, mais entra aos poucos, sempre um pouco mais, no mais dentro de nós. Começa a viajar-nos a língua e a confundir os sons dela com os nossos.

    Em nós está ela já, impossível desinstalá-la. As primeiras palavras nos dizem dizendo o mundo, aquele que somos e o outro: mãe e pai, bebé e casa, e papa e água e pão, e sujo e terra e gato… Quanto mais crescemos mais nos dizemos, e dizemos as coisas com mais e mais palavras. Algumas no início atraem-nos: leite e açúcar, água e boneco, brincar e menino, correr e banho, e flor e árvore e areia… Crescemos na língua à medida que a língua cresce por dentro de nós. Emocionamo-nos na palavra e a palavra nos emociona. Aprendemos devagar a fixar na escrita tais sentires, a capturar as coisas palavrando.

    Agora o mundo organiza-se também em breves construções ordenadas de palavras a que chamamos histórias ou cantigas ou mesmo poemas. Elas contam-nos e nós contamo-nos e contamos os outros. Cada vez mais as palavras traduzem a inteligibilidade do mundo, e também as feridas, o caos, as cicatrizes. Há palavras que nos atraem mas outras há que nos traem.

    Da língua materna e maternal que afinal nos habita – ou somos nós que já a habitamos ou as duas coisas? –, dessa língua, além de filhos, nos tornamos um pouco mestres e amos, estamos prontos a viajar com ela e a nela viajar, prontos a deixá-la ganhar pátria e ganhar mundo. Na língua nossa amamos, nela chegamos aos outros que a nós chegam, com ela fazemos a paz, também a guerra. E às vezes magoamo-la, violentamo-la. Além disso, a língua materna já não é apenas nossa mãe, nem nós apenas seus filhos. Somos carne da sua carne e ela carne nossa. Estamos talvez preparados para dar à luz. Para sermos mãe.

    Minha língua é minha mátria. Minha pátria é minha língua, dizia Caetano Veloso dizendo Pessoa dizendo…  

     João Pedro Mésseder


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