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    Outros Natais

    Outros Natais

    11/30/2021

    Todos os anos acontece o mesmo. Quando se aproxima o tempo do Natal, basta fechar os olhos para lembrar os natais da minha infância, o sabor das rabanadas, da aletria, dos figos secos, tão doces como o mel, e do cheiro da canela que perfumava a minha pequena aldeia ainda iluminada por candeias. Um tempo tão diferente, tão distante. Nesse tempo tão longínquo ninguém sabia do Pai Natal, quem punha as prendas nos tamancos, botas e sapatos, era o Menino Jesus. Como eu fazia pecados ao longo do ano, tinha à minha espera, na lareira ainda morna, um par de meias de lã e figos secos, embrulhados num cartuchinho de papel pardo.

    Também me lembro deste pedacinho de texto que está publicado no meu livro Sonhos de Natal, com ilustrações de Júlio Vanzeler, e comovo-me: 

     

    “…A primeira coisa a ir para dentro da gruta foi o musgo. Com muito jeito, alcatifámos o chão com as mantas fofas e verdes que fomos tirando das cestas. As heras foram crescendo em redor. E, de repente, o interior da gruta transformou-se numa serra verdinha, com arvoredo e cheia de pasto, a precisar de um rebanho de ovelhas e de alguns pastores.

               O senhor Afonso levantou a tampa da caixa e nós ficámos calados a ver o que estava lá dentro. E o que estava lá dentro eram muitos embrulhinhos de jornal muito bem acondicionados.

               Ai, mas aqueles jornais escondiam figuras que ganhavam vida e nos faziam sonhar tanto!

               A primeira figura que ficou sem o papel era um pastor que se fartava de rir. Tinha umas bochechas muito encarnadas, vestia uns calções que lhe davam até aos joelhos e trazia um saquinho pelo ombro e uma cabaça à roda da cintura. Era um pastor alegre e devia ser bem amigo das suas ovelhas. Muito atento, o pastor foi para o cimo do monte e começou a assobiar pelo seu cão.

               O cão, todo preto e com manchas brancas por todo o corpo, pulou da caixa, desembaraçou-se dos jornais que o embrulhavam, e foi logo ter com ele. Aquele cão era, com toda a certeza, um grande amigo do pastor, sempre pronto a ajudá-lo a guardar as ovelhas e a fazer-lhe companhia naquela serra imensa e silenciosa, onde o tempo custava a passar.

               Gordinhas, com o corpo coberto de lã branca muito encaracolada, as ovelhas também apareceram e espalharam-se por toda a verdura. Muitas estavam cheias de fome, porque não paravam de pastar. Duas, estavam tão fartas, que nem sequer olhavam para aquele belo pasto. De cabeça erguida, fartavam-se de balir. Se calhar achavam que estava na hora de dar a mama aos filhos. Mas eles, andavam lá longe, nos sítios mais altos do monte, a dar pinotes, felizes com tanta liberdade.

               Feita com espigas de trigo, saiu da caixa uma manjedoura. Era uma boa ideia. Se chovesse ou nevasse, aquela manjedoura serviria para lá pôr feno seco para o rebanho comer.

               Outro pastor chegou. Aquele pastor, que era ainda rapazinho e tinha um chapéu roto na cabeça, foi pôr-se junto dos cordeiros. E fez muito bem. Aquela parte da serra não estava vigiada. Se aparecesse um lobo, os cordeiros, coitaditos, nem sequer teriam tempo de chamar pelo cão.

               Depois apareceu uma vaca. Devia ter dentro dela um filhote, porque tinha uma grande barriga e quis deitar-se junto da manjedoura. Do outro lado veio encostar-se um burrinho. Logo depois apareceu S. José e foi encostar-se à manjedoura. Atrás de José, veio Maria.

               O burrinho, a vaca, José e Maria estavam a olhar para a manjedoura. Bem se via que estavam bastante preocupados. O bafo muito quente saía das narinas da vaca e do burrinho e aquecia a palha da manjedoura.

               Uma estrela prateada apareceu no cimo da gruta, bem perto de um galo, que não parava de cantar.

               Finalmente, muito gorducho, sempre a rir, só com uma fralda de pano no corpo, o Menino Jesus foi posto na manjedoura.

               Depois ficámos bastante tempo a olhar. A olhar. Calados.

               O silêncio era tão grande naquela gruta que até parecia que ouvíamos o Menino Jesus a respirar tranquilamente.

     

    António Mota , Sonhos de Natal, Edições Asa 

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