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Escrever com a ponta dos dedos
3/11/2020
Pega-se num lápis, de início, com a “mão cheia”. Depois, deixa-se que ele “escorregue”, graciosamente, para a ponta dos dedos. E, de cada vez que ele se mexe, que faça, pausadamente, parte do corpo. Antes, no princípio de tudo, empresta-se ao gesto de escrever um movimento; quase doloroso. E, a seguir, mais outro: tenso e grosseiro. Logo após, faz-se com que o lápis deslize de forma mais suave e mais articulada, em traços soltos, ainda desligados uns dos outros. Finalmente, deixa-se que ele os una. Desenha-se uma forma convencional que se destaca de um fundo. E mais outra. Junta-se ritmo ao desenho. E acrescenta-se som às letras. Depois, enquanto se vai do rabisco à forma, e se “apanham” as nuances dos sons, chega-se ao desenho das letras. E aprende-se a escrever.
Desenhar uma letra, projetando-a, de forma abstrata, no espaço; é assim que se começa. Liga-se a linha à forma e a forma ao som que ela guarda, quando se desenha. Simboliza-se e abstrai-se, ao mesmo tempo. E junta-se um significado. Associa-se motricidade e movimento. Corpo e pensamento. E pensa-se; com a pele! E esquadrinham-se os gestos; da forma como se observa e se imagina ao modo como se representa. E de dentro para fora do corpo; sempre! Enquanto se desenha um som e se brinca, “gatafunhando”, com ele. E se aprende e se interpreta. Antes, muito antes, de se saber ler. Desenhar uma letra é aprender a ler. E a raciocinar. Desenhar uma letra é conhecer.
É por isso que vivo com surpresa (e com perplexidade!) a adoção hegemónica do tablet como caderno diário, mesmo quando se trata de “desenhar” letras e de aprender a escrever. Como se se estivesse a reverter para a ponta dos dedos e para um toque subtil aquilo que só com o desenho e com o corpo se aprende. Desenhar as letras e ler “os desenhos” que se constroem com elas, eis aquilo que é insubstituível para que se aprenda a conhecer. “Aprender a ler e a escrever” será, mais ao contrário, aprender a escrever e, só então, a ler. Escrever é preciso!
Se a descoberta da escrita fez com que se tivesse temido que as pessoas deixassem de se recordar, o abandono do desenho das letras compromete a escrita. E a palavra. A palavra dita e a palavra escrita. Aprender a escrever com a ponta dos dedos pode fazer com que os nossos filhos deixem de ser amigos da escrita e deixem de ser “pessoas da palavra”. E, se for assim, um “mundo novo” poderá tornar-se num lugar pior.
Por Eduardo Sá