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    Professores: por uma política articulada, coerente e prolongada de dignificação profissional

    Professores: por uma política articulada, coerente e prolongada de dignificação profissional

    10/2/2023

    A qualidade dos professores (científica, pedagógica e didática) e a sua disponibilidade para investir diariamente na profissão constituem fatores determinantes do sucesso das aprendizagens dos alunos e da qualidade da educação. “Poderá um professor desmotivado motivar um aluno desmotivado?”. Enunciei esta e outras questões num artigo que publiquei em 2018, intitulado “os professores e a nuvem negra”, que reunia e descrevia uma multiplicidade de circunstâncias que estavam a gerar uma “tempestade perfeita” sobre os professores e sobre a educação em Portugal e onde afirmava que os professores têm de ser o centro de uma política pública “articulada, coerente e prolongada de valorização profissional e social. Agora é tempo de colher os frutos dessa não-política!”

    https://pontosj.pt/opiniao/os-professores-e-a-nuvem-negra/


    É o que se tem visto.

    Nos últimos cinquenta anos (ou seja, após 1974) o ponto mais alto da valorização política e socioprofissional dos professores terá sido a negociação e definição do Estatuto da Carreira Docente (ECD), sob a orientação do Ministro Roberto Carneiro. Nos mais de trinta anos que, entretanto, decorreram, a realidade alterou-se profundamente e era preciso ter-se agido politicamente, por antecipação e em várias dimensões, o que não aconteceu. Tentei várias vezes propor que esta valorização fosse induzida como política pública prioritária por iniciativa do Conselho Nacional de Educação, mas sem sucesso. A resposta era sempre a mesma: “isso não é bem assim, calma, que exagero!”.

    Grande parte do que tem acontecido e influenciado negativamente a variável professores na política pública de educação era previsível, tal como o envelhecimento, a necessidade de programação da renovação dos efetivos em grande escala (política de reformas, captação de novos efetivos, ... não ficar à espera que a redução do número de alunos compensasse as saídas), os impactos da debilidade da formação inicial e do grande decréscimo da sua procura (com médias de acesso muito baixas), o cansaço e o desgaste profissional crescentes, o impacto negativo do congelamento do tempo de serviço, ... De 2018 para cá, a única novidade foi a pandemia e esta só ajudou a agravar ainda mais um quadro que já era negro.

    O que é realmente novo é o agravamento da situação, cinco anos volvidos. Não sei como dizer de um modo mais suave o que sentia e sinto como algo muito grave: estamos a plantar batatas, na expetativa de colher papoilas.

    Aproveito então esta nova oportunidade para propor uma abordagem mais global destes cinquenta anos, socorrendo-me da metáfora geracional: uma geração que sai de cena e uma outra que entra, em momentos históricos muito diferentes.


    Carregar aos ombros a escolarização e a democratização do país

    Ao longo destes cinquenta anos, os professores carregaram aos seus ombros, seja como docentes, seja como diretores escolares e até como técnicos dos serviços do próprio Ministério da Educação, o grande desafio sociocultural de promover a escolarização da população portuguesa, sem deixar ninguém em filas de espera ou de fora, um sonho que durante muitos anos tantos alimentaram e que a ditadura salazarista impediu de concretizar. Lentamente, por vezes muito lentamente, primeiro as famílias e depois as autarquias, o repto foi envolvendo outros atores sociais. Essa geração, que ancorou e concretizou, desde as décadas de setenta e oitenta, o grande objetivo democrático de escolarizar pela primeira vez todos os portugueses, qualquer que fosse a sua origem socioeconómica, mulheres e homens, do interior esquecido ao litoral, é a mesma que agora chega ao fim da sua carreira profissional. Os muitos milhares que, desde muito jovens, se dedicaram ao ensino, envoltos num projeto mobilizador e maior do que a soma de todos eles, são esses mesmos muitos milhares que agora se retiram de cena.

    Acontece que, nas três décadas que se seguiram ao ECD, estas flores do jardim não foram suficientemente regadas nem cuidadas, seja pelos governos seja pela Assembleia da República. Se a educação é o principal esteio de um povo e o seu principal ativo para o presente e para as décadas futuras, todo o cuidado com os professores e as escolas será sempre pouco. Ora, os alicerces desta gigantesca construção sociocultural, finalmente concretizada, foram descurados. Como todos os portugueses já estavam na escola, o principal estava garantido.

    Como, garantido?

    Anos e anos com “a casa às costas”, percorrendo o país, lecionando em todo o lado onde era preciso abrir novas escolas, com ou sem acessos, envolvidos num sistema nacional de colocações anacrónico e pessoal e profissionalmente muito desgastante (porque é que nunca se alterou o modelo? A quem é que ele interessa e porquê?); as possibilidades de progressão na carreira e de efetivação foram-se tornando mais escassas para muitos milhares de docentes que continuavam a percorrer o país, sem se avaliar corretamente a erosão que isso estava a provocar, mesmo entre os novos docentes que poderiam vir a entrar no sistema; as próprias políticas de educação, após o período de esperança e de largueza de horizontes que se seguiu à nova Lei de Bases (1986), tornaram-se erráticas, contraditórias entre si, em curtos ciclos eleitorais e governativos (por vezes muito curtos), o que ia fazendo dos profissionais de ensino uns aplicadores-joguetes de vários tipos de medidas, sem autonomia profissional e envoltos em tecnocracias menorizantes (quem não viu esta profunda perda de autonomia? Quem precisa que se faça um desenho a explicar que sem ela os profissionais perdem o respeito por si mesmos e tornam-se meros executores “do que eles querem”?); ao mesmo tempo, a administração educacional (tal como os dirigentes políticos), crescia enredada num modelo muito centralista, desconfiado da autonomia das escolas e da responsabilidade profissional dos professores, o que só contribuía para acelerar a sua perda de prestígio social; o modelo dominante de ensino continuou baseado em práticas profissionais individualizadas e isoladas, onde o que conta é cada professor e a sua sala de aula, ao mesmo tempo que cada escola permaneceu isolada das restantes, cada vez mais dependente de um controlo hiperburocrático de uma tutela distante; as tremendas assimetrias regionais no acesso à educação foram sendo esbatidas e, como assinalam os resultados do último Censos, em boa parte ultrapassadas, também fruto de um grande esforço de deslocação contínua de muitos milhares de docentes para longe de casa, durante muitos anos, sem apoios adicionais e, tantas vezes, sem qualquer tipo de acarinhamento por parte das autoridades locais.

    Logo no arranque do novo século, ficava claro que o sonho da escolarização de todos os portugueses estava finalmente em vias de ser alcançado e que este novo e essencial suporte comum para um país mais justo e próspero nos dava outras asas para voar como comunidade e como cidadãos, individualmente. As bases de um novo modelo de desenvolvimento pessoal, social e económico estavam finalmente lançadas, era preciso que toda a sociedade aprendesse (e aprenda) a tirar o máximo partido desta nova realidade.

    Mas poucos se aperceberam que, ao mesmo tempo, dentro dessa montanha que se havia subido, ia crescendo a corrosão pessoal e profissional em muitos milhares de professores, fruto do adiamento na resolução destes e de outros problemas e resultado da sua consequente desvalorização social.

    Entretanto, não faltaram estudos que evidenciavam o crescente mal-estar docente, a erosão pessoal e profissional, a desmotivação daninha que grassava. Lembro-me de ouvir dirigentes políticos ridicularizarem os resultados de muita investigação feita sobre a situação profissional dos professores portugueses dizendo: “ainda se queixam, têm é férias a mais”.

    Sucessivos governos e parlamentos, que deveriam ter cuidado destes servidores públicos, seja dignificando a geração que ergueu o sistema nacional de educação “universal e obrigatório”, seja cuidando de preparar a que a viria substituir, não o fizeram convenientemente.


    Uma nova geração sem novos horizontes

    Só quando o fogo chegou ao lençol é que se começou a gritar por socorro. É incompreensível. Haverá algum dado da realidade mais previsível do que a progressão etária dos seres humanos? Porque não se agiu perante a gravidade do mal-estar crescente? Porque é que sucessivos governos e parlamentos não se focaram nesta prioridade de qualquer país, cuidar da qualidade dos seus professores?

    As mais severas ruínas edificam-se imperial e silenciosamente. Quando os sintomas de cansaço, desgaste, desilusão e desmotivação já atingiam mais de um terço dos docentes (como ilustrei nesse artigo) era preciso ter agido, bem e depressa e, ao mesmo tempo, investido séria e continuadamente numa nova geração de jovens professores mais entusiasmados, motivados, aptos a enfrentar, ao lado das famílias e de toda sociedade, os reptos de profundas alterações socioculturais que, entretanto, estavam e estão a ocorrer.

    Há uma nova geração de professores que tem pelos menos três grandes problemas-desafios, que podem revelar-se fascinantes: (i) saber ensinar em contextos de forte heterogeneidade cultural, pois, agora que estão todos os portugueses na escola, das mais diversas origens sociais, vemos somarem-se muitos milhares de crianças e jovens filhos de novas vagas de imigrantes, para quem o português não é a língua materna; as escolas e os professores vão desempenhar (mais uma vez) um papel essencial na integração desta nova população do país; (ii) saber ensinar num contexto em que proliferam novos modos e tempos de acesso ao conhecimento (ex. robótica e inteligência artificial), o ensino individualizado e com apoio de plataformas eletrónicas (no limite, uma escolarização sem escola), a muito difícil concentração e atenção dos alunos, crescentemente dependentes do uso das redes sociais, que surge quase sempre aliada à “indisciplina”; (iii) saber como agir diante do persistente isolamento das escolas e dos profissionais, as primeiras entregues à sua sorte, qualquer que esta seja, os outros fechados (ainda) sobre as suas salas de aula, quando a qualidade do ensino depende imenso do trabalho colaborativo e em equipa e do “ethos” concreto de cada escola.

    Entretanto, a nova geração de professores, que está e estará a enfrentar estes e outros desafios, está gravemente ferida: de nova pouco tem, pois as idades de entrada na carreira são muito elevadas; debate-se com os mesmos problemas “profissionais” da geração que sai e está a beber do mesmo cálice; encontra-se bastante desorientada diante da complexidade e instabilidade do contexto sociocultural e familiar; não tem diante de si, nem sequer em anúncios partidários, qualquer perspetiva de se erguer “uma política articulada, coerente e prolongada de valorização profissional e social” dos professores.


    Estamos a assistir ao que sempre sucede nas dinâmicas sociais: de um momento para o outro, aparentemente, o que era tolerado deixa de o ser. O que era aceitável, deixa de o ser. A nobre e esforçada ação dos professores durante a pandemia, permitindo manter o sistema de ensino em funcionamento, em condições tão difíceis, ajudou a desvelar e acentuar a contraditória desvalorização social e política a que têm sido condenados. Gotas há que fazem transbordar os copos e há sempre quem se aproveite destes momentos para brilhar de modo oportunista sob a luz da ribalta.

    Certo é que um mau jogo não pode produzir bons resultados. O esquecimento de alguém, décadas a fio, não favorece o crescimento saudável de ninguém. Hoje, contamos com muitos milhares de docentes à espera do dia em que se podem livrar deste “filme”, outros milhares que querem a estabilidade profissional e não a conseguem alcançar e já começam a faltar muitos novos professores, havendo cada vez mais alunos sem algumas aulas. Amanhã, dentro de dez anos, o que teremos?

    É claro que persistem muitos milhares de professores dedicados e profissionalmente competentes e entusiasmados e isso deve ser pública e devidamente reconhecido. Estes, o segredo obnubilado no meio da agitação reinante, precisam, talvez ainda mais do que os outros, de políticas coerentes e continuadas de dignificação profissional.


    Para concluir, repito: aquilo de que os professores (e toda a sociedade portuguesa) mais carecem não é apenas da resolução de “problemas pendentes”, por mais significativos que sejam, como a “recuperação do tempo de serviço”, mas também de uma política pública dirigida para e trabalhada com os professores, uma política “articulada, coerente e prolongada de valorização profissional e social”, que seja consensual (no essencial) e que ajude a desfazer os bloqueios persistentes e duradouros, o que contempla, entre outros aspetos: a captação de jovens competentes e interessados e o acesso aos cursos de formação inicial; os tipos de formação inicial; os modelos de indução profissional, formação em serviço e acompanhamento do desenvolvimento profissional, de modo a abrir as portas a uma maior autonomia profissional e ao trabalho colaborativo; as possibilidades e os requisitos de progressão profissional; a diversificação dos modelos de acesso à reforma.

    Não é fácil, mas optar sempre pelo que é mais fácil e urgente dá mau resultado, porque se foge sempre a olhar de frente para o que é mais importante.

    Países há (mas poucos) que perceberam (há décadas) que era preciso cuidar da qualidade dos seus professores, tornando permanentemente atrativo o exercício deste serviço público, certos de que estavam a cuidar de algo essencial para as suas comunidades, tanto para o presente como para o futuro. Em tempos tão conturbados e de tanta incerteza como são os que vivemos, ainda se torna mais claro e urgente que as sociedades e os dirigentes políticos, aos mais diversos níveis, se foquem naquilo que pode garantir uma educação de qualidade.

    Como se entende que a Assembleia da República pareça alheada de tudo isto?


    Joaquim Azevedo

    Professor jubilado da Universidade Católica Portuguesa

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