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25 de Abril: o antes e o depois
4/21/2021
Com frequência sou convidado a visitar escolas para dialogar com crianças e jovens sobre os meus livros. Nesses encontros, a conversa leva-nos muitas vezes até ao meu Romance do 25 de Abril em Prosa Rimada e Versificada, publicado pela Caminho e ilustrado por esse notável ilustrador que é Alex Gozblau. A obra tem sido, aliás, muito usada por mediadores da leitura e no teatro. Durante as conversas, surge quase sempre a pergunta sobre como era viver em Portugal antes de 25 de Abril de 1974. Na sequência dessa, vem uma outra: como passou a ser essa vida, uma vez reconquistada a liberdade e reposta a democracia formal, pouco tempo depois, com a realização das primeiras eleições livres?
Antes de falar dessa reconquista, costumo recordar aos jovens algumas coisas que, não sei porquê, tendem a ser esquecidas (algumas pelo menos), para apenas se falar de liberdade, liberdade, liberdade… E procuro responder com palavras que os mais jovens – e sobretudo os mais pequenos – compreendam.
Depois do 25 de Abril de 1974 – lembro-lhes – acabou a Guerra Colonial e, com isso, chegou ao fim o imenso rol de jovens mortos ao serviço das forças armadas portuguesas: quase 9000. Pensem também – costumo chamar a atenção – nas mães e nos pais, nos avós, nos irmãos, nas namoradas ou nas mulheres, e mesmo nos filhos pequenos de muitos desses jovens que morreram. E pensem ainda nos milhares e milhares de africanos mortos nas suas terras, durante a luta pela independência. E não esqueçam todos aqueles que vieram da guerra mutilados ou mentalmente afetados para sempre, por terem sido obrigados a testemunhar os horrores da guerra.
A seguir à instauração da ditadura do Estado Novo, a escolaridade obrigatória baixou de quatro para três anos e, durante um tempo, deixou de ser obrigatória para as raparigas.
Antes do 25 de Abril de 1974, a maioria das escolas e liceus mantinham separadas as turmas de rapazes das turmas de raparigas, sendo a maior parte dos liceus ou masculinos ou femininos.
Antes do 25 de Abril, as mulheres não tinham os mesmos direitos legais que os homens, e muitas necessitavam de autorização escrita dos maridos para certos atos da vida social. As professoras do ensino primário deviam permanecer solteiras, só podendo casar mediante um pedido de autorização ao Ministério da Educação em que o pretendente era obrigado a apresentar atestados de bom comportamento moral e cívico e de recebimento de um ordenado em harmonia com o da noiva.
Quando, há muito, Goa, Damão e Diu já não faziam parte do Estado português, os manuais de Geografia e muitos professores continuavam a ensinar que esses territórios eram portugueses, como se o tempo tivesse parado. Esta não era, obviamente, a única mentira ensinada nos manuais de então.
Na maior parte dos estabelecimentos de ensino, as associações de estudantes estavam interditas (costumo dar o meu exemplo: quase fui preso, no ano letivo de 1973-1974, por fazer parte duma lista candidata às eleições – proibidas – da não autorizada Associação de Estudantes da Faculdade de Letras do Porto).
Antes do 25 de Abril, quando eram suspensos ou mesmo presos, os estudantes universitários envolvidos em atividades associativas e políticas eram incorporados à força na tropa, e incluídos nos contingentes enviados para a Guerra Colonial.
Antes do 25 de Abril, era proibido o consumo de coca-cola, ninguém sabia muito bem porquê.
Antes do 25 de Abril, a mortalidade infantil e o analfabetismo atingiam níveis escandalosos que, na Europa e no mundo, envergonhavam o país.
Antes do 25 de Abril, não havia os hospitais que há hoje, os centros de saúde que há hoje, os médicos de família que há hoje, o Serviço Nacional de Saúde que há hoje.
Antes do 25 de Abril, não havia salário mínimo, nem passe social, e muitos idosos não tinham pensão de reforma.
Antes do 25 de Abril muitos meninos e jovens não tinham possibilidades de ir à escola e eram obrigados a trabalhar – na construção civil, nos campos, nas fábricas, no serviço doméstico –, isto numa idade que era a de estudar e de brincar.
Antes do 25 de Abril existiam bairros de lata nas periferias das grandes cidades e não faltava quem passasse fome, nas aldeias e campos do Alentejo, do Ribatejo, do Douro e de Trás-os-Montes, e mesmo nas cidades.
Antes do 25 de Abril, não havia as muitas escolas que há hoje, as muitas universidades que há hoje, os teatros, centros culturais e auditórios municipais que há hoje, os parques desportivos e bibliotecas públicas, bem equipadas e modernas, que há hoje.
Evidentemente, não havia as estradas que há hoje.
Antes do 25 de Abril, a injustiça social e económica era chocante. Um pequeno grupo de famílias dominava o país, e a Ditadura servia, no fundo, para manter e ampliar os privilégios desse grupo.
E é claro que, antes do 25 de Abril, não havia eleições livres para escolher os governantes. Liberdade de expressão e de associação não havia. A Censura à imprensa, à rádio, à televisão, aos espetáculos era uma realidade diária. Certos livros, músicas, filmes e opiniões eram proibidos. Lembro-me de comprar livros proibidos às escondidas.
Quem se opunha a este estado de coisas era perseguido. Milhares de opositores foram presos, torturados e até assassinados pela polícia política da Ditadura de Salazar e Marcelo Caetano: a PVDE, mais tarde PIDE, depois DGS. Muitos opositores perderam os empregos, muitos foram impedidos de ensinar e de trabalhar na função pública, e não foram poucos os obrigados a exilar-se noutros países para poderem arranjar trabalho. Aliás, a par dos exilados, centenas de milhares de portugueses se viram obrigados a emigrar para conseguirem ganhar a vida – vejam-se as enormes comunidades de portugueses hoje existentes na França, no Luxemburgo, na Suíça, na Alemanha, nas Américas e noutros países.
Por tudo isto, o dia 25 de Abril de 1974 foi uma festa. Transformou-se ela no princípio de uma revolução essencialmente pacífica e bonita, que tem no cravo vermelho e na “Grândola, vila morena”, de José Afonso, os seus símbolos maiores. Uma revolução que surpreendeu o mundo e atraiu muitos estrangeiros curiosos. E os dias que se seguiram ao 25 de Abril continuaram a ser de festa: a festa da liberdade reconquistada e da possibilidade de construir um país novo, mais justo, mais fraterno e solidário, mais democrático.
Isto costumo eu contar e dizer aos mais jovens, da maneira mais simples que me é possível.
E por tudo o que disse, escrevi uma recente “Canção do dia 25 de Abril” (e já a cantei em público), citando duas expressões de uns inesquecíveis versos de Sophia de Mello Breyner Andresen. É assim:
Dia em que
as calçadas cresceram
e as horas se esqueceram
e em praças
ruas e avenidas
se agitaram cravos mil.
Esse dia sem igual,
como um “dia inicial”,
esse “dia inteiro e limpo”
foi o 25 de Abril.
João Pedro Mésseder
Para saber mais sobre a obra Romance do 25 de Abril em Prosa Rimada e Versificada aceda p.f. no link abaixo: